Batizado de Fogo 24/12/2010


Embarquei no navio momentos antes da partida, com tempo apenas para ser apresentado à minha tarefa e para o jantar, o que foi bastante oportuno, pois a minha alimentação durante a viagem havia se limitado a duas bananas e um pacote de granola. A comida da Laura, cozinheira chefe do Steve Irwin, estava tão deliciosa quanto da última vez que a experimentei em abril desse ano. O Capitão Paul Watson se aproxima da área onde estou jantando na companhia dos outros quatro tripulantes brasileiros (Gunter, Primeiro Oficial; Luis, Segundo Oficial; Roberta, assistente na Ponte de Comando e no Deck e; Bárbara, fotógrafa oficial da campanha) e, referindo-se ao número recorde de brasileiros a bordo, diz: “Fucking Brazilian Mafia está planejando tomar o meu navio, vou instalar escutas por todos os lados para descobrir o que eles estão planejando” (risos). Antes disso, eu já o havia cumprimentado próximo à sua cabine, onde lhe disse que será um prazer servir ao seu lado. Em resposta, ele notou que estávamos prestes a zarpar, como quem diz que por pouco ele não poderia ter esperado mais.
Depois de ter sido notificado sobre o meu posto e termos jantado, partimos rumo à Antártida! A navegação no momento da partida estava tão tranquila que eu praticamente não percebi o momento da partida, uma vez que estava sendo apresentado às tarefas no deck, enrolando as cordas que nos prendiam ao porto, corre para lá, corre para cá... Quando olhei para além da borda do navio, o porto já devia estar a uns 500 metros de distância. Foi somente então que me dei conta que já havíamos partido. Era o início da campanha para mim.

Quem dera a navegação tivesse continuado tão tranquila ao ponto de não ser percebida! Na medida em que o navio ganhava velocidade e deixava as águas calmas do porto, em 20 minutos eu já sentia os efeitos da navegação oceânica. Pedi para deixar o deck, pois não estava conseguindo fazer o trabalhar. Desci um lance de escadas em direção ao quarto, o que me deixou ainda mais nauseado. Volto ao deck para olhar para o horizonte. Melhoro um pouco por um tempo, mas o navio já jogava tanto que eu (e todos outros que lá estavam) precisavam se agarrar a alguma estrutura para poderem se manter no lugar. Tracei mentalmente a rota até o banheiro mais próximo, calculando o tempo que levaria para chegar lá nessas condições, já que o vento estava forte e querer me desfazer do jantar diretamente pelo deck poderia ser desastroso. Deve ter levado uns 10 minutos entre o momento em que tracei a rota e o momento em que a coloquei em prática. Havia 18 anos que eu não vomitava, quando eu peguei uma intoxicação alimentar na Índia em 1992. Desde aquela ocasião, mesmo quando estou ruim do estômago, não consigo vomitar, por mais que eu queira. Nas horas seguintes, vomitei tudo o que não vomitei nos últimos 18 anos. Vomitei o que estava no estômago e também o que não estava. Vomitei o jantar, o chá de gengibre que deveria ser tiro e queda para enjoos, a água, vomitei até mesmo o vazio. O navio balançava muito! Em um dado momento perguntei à minha colega de quarto, uma belga com experiência em navios, se aquela era uma turbulência normal ou extraordinária. Para a minha felicidade, ela disse que era fora do esperado. Foram 36 horas divididas entre a cama e o banheiro, sempre longe da cozinha.


Foto por George Guimarães


Deveremos pegar mais turbulência dessa dimensão mais ao Sul, sendo que depois em uma latitude mais abaixo o oceano tende a acalmar. Mas nesse trecho navegado nas primeiras 36 horas, havíamos nos deparado com uma turbulência inesperada. Outros tripulantes mais experientes também passavam mal, mas ninguém tanto quanto eu naquele momento. Em uma das visitas ao banheiro, em um momento que não sei dizer se era dia ou noite, início ou fim desse período nauseoso, uma tripulante francesa ocupava o vaso sanitário enquanto eu ocupava a pia (foi uma dessas vezes que eu estava vomitando o vazio, só para não perder o hábito, então a pia era suficiente para a tarefa). A melhor parte disso tudo é que o trabalho de limpeza dos banheiros fica ao cargo dos Deckhand... Com esse detalhe, encerro a sessão nauseante desse relatório, ciente de que apesar de eu estar comentado sobre isso com naturalidade nesse momento, certamente não há naturalidade para a maioria que está lendo esse texto. Eu mesmo provavelmente ficarei nauseado quando ler isso daqui a alguns meses.

Tudo balança e é certo que a estrutura do navio é submetida a torções cada vez que o oceano o joga para os lados. A cada movimento, tudo range. Balançam as roupas que estão penduradas, balançam as pessoas que andam pelos corredores e pelo deck. Na turbulência atual, o navio balança de maneira irregular, não cíclica, o que torna imprevisível para qual lado tenderá a próxima força. Há vezes em que o movimento se estende ao dobro na mesma direção, há vezes em que ele muda subitamente. É difícil o que é melhor: deixar o corpo acompanhar o movimento ou criar resistência a eles. Para se ter uma ideia, nessa situação de turbulência grande, a força necessária para equilibrar o peso ao se manter em pé, jogando-o de uma perna para outra, equivale a cerca de cinco vezes a força necessária no momento da descida em uma onda numa prancha de surf, só que de maneira contínua! É como surfar o Atlântico Sul em uma enorme prancha! Outra comparação inevitável é com uma montanha-russa. É como se a cada cinco segundos viesse uma nova curva ou descida súbita, depois outra, e depois outra, e para essa sensação não é preciso estar em pé, ou seja, é inevitável mesmo estando deitado. Para abrir a porta é preciso calcular o momento em que o navio balançará para o lado que favorece o movimento de abertura. Idem para fechar. Alguns segundos de espera e depois o movimento no momento certo. Para subir ou descer da cama é um pouco mais complicado, pois o espaço entre o colchão e o teto no beliche é da altura da minha coxa (se dobrar a perna, o joelho bate no teto). Daí não apenas é necessário calcular o momento certo de dar o impulso para cima ou para baixo, esperando que esse momento coincida com o movimento para a direita ou para a esquerda, como também é preciso fazer o movimento como se fosse um mergulho, pois não dá para ir realmente para cima, como as pancadas que já levei na cabeça podem testemunhar. Tenho certeza que sem as náuseas ou sem estar correndo para o banheiro poderei fazer isso com uma perna, com os olhos fechados ou com as mãos amarradas. Se tivesse um carro dentro do quarto, conseguiria fazer tudo isso inclusive enquanto dirijo! Mas por hora está naquele ponto onde é tão complicado quanto é divertido.

Foto por George Guimarães

No único momento em que pisei fora do quarto no qual a intenção não era chegar ao banheiro, (CENSORED). No exato momento em que coloquei o pé para fora, (CENSORED). Subi um lance de escadas que leva à parte traseira do navio. Durante todas as horas em que eu estava sendo jogado para lá e para cá dentro do quarto, eu não havia tido a oportunidade de ver qual era exatamente a força que me jogava. Eu havia saído do quarto em busca de algum alívio, mas o que se mostrava era o pior cenário até aquele momento. (CENSORED) As ondas batiam na altura do deck e, (CENSORED). A primeira constatação foi que alguns dos tanques, que carregam 200 litros de combustível cada, haviam se movimentado com os impactos. Há dezenas desses tanques que armazenam combustível para o helicóptero e para os barcos espalhados pelo deck. Como seria impossível trabalhar no deck naquela circunstância, a equipe do deck decidiu deixá-los como estavam Nesse momento, eu me considerava excluído da equipe, já que novamente tratava de traçar mentalmente a rota até o banheiro mais próximo.

Foto por George Guimarães


No dia seguinte, fiquei sabendo que as ondas haviam chegado a sete metros de altura, mas a altura delas não foi o que causou o maior efeito, mas sim a direção na qual elas nos atingiam. O navio pode balançar de duas maneiras: “Pitching”, que é quando ele balança para frente e para trás (empinando e embicando num movimento contínuo), ou “Rolling", que é quando ele balança para os lados (acompanhado ainda do movimento anterior, como se desenhasse um círculo). É essa última situação que causa os efeitos mais severos no organismo. Rolling foi justamente o movimento que experimentamos nas primeiras 36 horas de navegação, uma situação nauseante mesmo para os mais experientes.

Passadas 36 horas a bordo, minha colega de quarto veio me acordar para assistir ao nascer do Sol da Ponte de Comando (era o plantão dela e a Ponte de Comando estava tranquila). O Sol nascendo às 4 horas da manhã, o oceano calmo e a vista extasiante de uma região raramente visitada anunciavam o início de uma nova fase nessa jornada. Em seguida, tivemos um dia cheio de surpresas, as quais por motivos de segurança não podem ser relatadas por hora (pois poderiam levar a frota baleeira a deduzir a nossa localização), mas que serão comentadas quando for apropriado. O que posso dizer é que as náuseas terminaram e com isso pude trabalhar o dia todo em tarefas diversas. Os acontecimentos do dia somente fizeram reafirmar a minha certeza sobre a força que essa campanha terá para pôr fim à atividade de caça a baleias na Antártida!

Foto por George Guimarães

4 comentários:

  1. Ainda bem que li isto de estômago vazio!!!!!
    bjs
    Deolinda

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  2. Se o desejo de estar junto ao Sea Shepherd fosse o suficiente para fazer parte desse combate estaria feliz. Mas sabendo que você, George, está a postos, mesmo que nauseante, é muito gratificante. Muita força nessa empreitada.

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  3. Força George!Estamos com você.

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  4. Ju.....quanto tempo...
    Parabens pela sua luta, eu como seu amigo ha muitos anos sei o quanto sua luta é verdadeira e isenta de outros interesses que não o da defesa da vida..... Força aí....

    Eduardo Vezzetti

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