Nos últimos dias do mês de janeiro, começamos a rumar de volta à Nova Zelândia, confiantes de que os outros navios da frota encontrariam o navio-fábrica durante o afastamento do Steve Irwin para reabastecimento com combustível e suprimentos para toda a frota. O navio arpoeiro continuava nos seguindo, mas a tarefa agora era chegar ao porto, sem expectativa de embates no trajeto. Quanto mais ele nos seguisse, melhor para a campanha, pois estando ocupado com essa tarefa ele não estaria caçando. Com o clima mais tranquilo, fui dispensado das minhas funções na Ponte de Comando. Passei a ajudar em algumas tarefas do Deck pela manhã e no período da tarde trabalhei em desenvolver um manual de nutrição vegetariana para a equipe da cozinha. O objetivo foi delinear algumas diretrizes para serem usadas pelas equipes das cozinhas de todas as embarcações da Sea Shepherd de modo a oferecer um cardápio equilibrado à tripulação. A alimentação a bordo do Steve Irwin é bastante adequada do ponto de vista nutricional. A única falha é a falta de alimentos frescos, mas isso é uma restrição inerente às particularidades dessa operação, onde a disponibilidade de alimentos frescos está atrelada à duração de tempo durante a qual o navio fica distante do porto. A cozinheira chefe do Steve Irwin já tem 6 anos de experiência a bordo e com isso aprendeu a oferecer um cardápio equilibrado mesmo nessas condições, planejando bem as compras e administrando muito bem as restrições que são peculiares à campanha. Portanto, esse manual não seria essencial ao Steve Irwin pelo que pude observar nessa campanha específica, mas não sei dizer o que acontece nas cozinhas das outras embarcações e como foi ela quem solicitou a confecção do manual, a necessidade deve existir de alguma forma.
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Pizzas veganas com "frios" e "queijo" vegetais |
Conforme afirmei, não havia expectativa de enfrentamento por esses dias, mas foi no dia 29 de janeiro que nós da equipe do Deck fomos acordados às 4 horas da manhã para nos apresentarmos ao convés com urgência. Como não dá tempo de informar o motivo e a minha cabine fica bem ao lado da escada que dá acesso à área do convés onde deveríamos nos apresentar, pulei da cama e fui ver do que se tratava antes de colocar a roupa apropriada. Estava nevando e eu, curioso, vestindo somente uma blusa, tratei de apurar logo para poder retornar e me trocar. Fui até a borda direita do navio para poder enxergar mais à frente. Para a minha surpresa, o navio arpoeiro Yushinmaru estava a cerca de 200 metros do Steve Irwin – eu nunca o havia visto de tão perto e ele manobrava de maneira feroz! Foi o tempo de eu exclamar um palavrão básico antes de virar as costas e correr escada abaixo até a sala onde ficam armazenadas as roupas usadas durante o combate. Com essa proximidade do navio e seus canhões d’água, ninguém quer estar sem a roupa de proteção.
Uma vez que estávamos todos uniformizados e reunidos no convés, o Yushinmaru havia ganhado distância. Estávamos em meio a um grande campo de growlers. Até aquele momento, eu havia dormido poucas horas por causa do barulho constante dos growlers que raspavam no casco do navio (a minha cabine fica em uma posição crítica para receber o impacto dos growlers bem em sua parede, sendo a mais próxima da proa e estando no mesmo nível da água). O que ocorreu foi que, momentos antes, o Yushinmaru nos perdeu de vista por causa da neve e da neblina e ao mesmo tempo nós reduzimos a velocidade por causa dos growlers. Tendo detectado o Yushinmaru a uma distância muito pequena na traseira do Steve Irwin, o Capitão Paul Watson foi chamado à Ponte e decidiu realizar uma manobra de 180 graus, resultando nessa aproximação tão curta do navio arpoeiro naquele primeiro momento quando fomos chamados. Mas por fim o navio arpoeiro se afastou e toda a movimentação não passou de um bom aquecimento matinal, que foi finalizado com um exercício de lançamento de bolas de neve em alvos imaginários no imenso oceano. Poucas horas depois começaria a rotina normal de trabalho no Deck, sem folga ou atraso mesmo em situações excepcionais como a dessa madrugada com a adrenalina correndo nas veias.
Depois de ter recebido como presente de Natal a oportunidade de estar a bordo e como presente de Ano Novo a localização da frota japonesa, o dia 02 de fevereiro parecia prometer uma surpresa mais para marcar o meu aniversário. Eu desejava receber como presente a localização do navio-fábrica, mas não foi assim que aconteceu. Eu geralmente escolho estar em algum lugar distante das pessoas e próximo à natureza no dia do meu aniversário. Paradoxalmente, apesar de eu estar no lugar mais distante onde já estive (a milhares de quilômetros de casa e com uma densidade demográfica que, em um raio de várias centenas de quilômetros, resumia-se às 44 pessoas a bordo do Steve Irwin e algumas outras mais a bordo do Yushinmaru que nos seguia logo atrás), eu me encontrava em uma situação onde não seria possível evitar estar com outras 43 pessoas em um espaço bastante limitado (risos). Foi realmente um aniversário especial, o qual passei na companhia de pessoas que escolheram abrir mão do seu conforto e da sua segurança, colocando suas vidas em risco pela preservação da vida e do planeta. Seria difícil estar em melhor companhia. Ganhei um bolo com cobertura de morango (em conserva) e recebi os parabéns em vários idiomas.
Outro fato inusitado sobre o meu aniversário desse ano é que ele durou apenas 4 horas. Isso mesmo, o dia 02 de fevereiro desse ano teve apenas 4 horas de duração para a tripulação. Explico. O meridiano dos 180 graus, que fica diretamente oposto ao meridiano de Greenwich (zero grau), marca a mudança de data. Ele fica logo à direita (ao leste) da Nova Zelândia, onde não há muito mais terra em meio à vastidão do Oceano Pacífico. O dia começa ao leste do meridiano 180 e termina a oeste do mesmo. Ou seja, se você estiver ao oeste dessa linha e rumar ao leste, cruzando-a, você se mantém no mesmo horário, só que do dia anterior. Se cruzar a linha na direção oposta, o oposto acontece, voltando ao mesmo horário, só que do dia seguinte. Em um dado momento, enquanto rumávamos em direção ao oeste estando ao leste do meridiano 180, estávamos num ponto onde a rigor seriam 8 horas da noite do dia 01 de fevereiro. Ao atravessarmos o meridiano 180, em um mero instante já estávamos às 8 horas da noite do dia 02 de fevereiro. Ou seja, o dia acabou 4 horas depois de ter começado! Sorte não ter mudado o curso nas próximas horas, ou eu poderia ter envelhecido mais um ano. Com sorte, nesse ano terei envelhecido apenas um oitavo de ano (risos).
Nos últimos dias da campanha, o Steve Irwin nos levou a uma distância de cerca de apenas 1.000 milhas do Pólo Sul, ou apenas 300 milhas ao norte do ponto mais ao sul onde o oceano pode chegar, onde ele encontra o continente Antártico em seu trecho mais curto. Isso significa dizer que com mais um dia de navegação teríamos chegado ao ponto mais ao sul do nosso planeta ao qual um navio pode chegar. No dia 04 de fevereiro recebemos a notícia de que Gojira e o Bob Barker haviam conseguido despistar o navio arpoeiro que os seguia, aumentando assim as suas chances de encontrarem o navio-fábrica. Receber uma boa notícia como essa no momento em que estamos distantes do foco da ação é muito reconfortante.
No final da tarde do dia 05 de fevereiro avistávamos a terra firme! Depois de 46 dias olhando para a vastidão do oceano por pelos menos 8 horas diárias, durante os quais a única porção de terra com um vegetal vivo ao alcance dos olhos se resumia a um vaso de salsão que ornamentava o fogão da cozinha (sim, essa era a única planta a bordo), vejo surgir no horizonte um trecho da Ilha Sul da Nova Zelândia. É indescritível a sensação que experimentei ao ver terra firme depois de ter passado tanto tempo distante dela e é comovente a clareza da percepção sobre o quanto somos delicadamente dependentes do nosso habitat. Depois de 46 dias a bordo de um navio em situação de combate na região mais inóspita do nosso planeta, a minha percepção de conexão com o planeta ganha uma nova clareza, em especial no que diz respeito à nossa fragilidade frente à sua força, que ao mesmo tempo em que molda a possibilidade da nossa co-existência, é também a mesma força capaz de nos exterminar sem muito esforço ou explicação.
Chegamos ao porto ao entardecer e ganhamos uma recepção calorosa dos ativistas locais, que nos aguardavam com faixas e muitos gritos de incentivo. E nos aguardavam com o melhor presente que poderíamos desejar naquele momento: frutas frescas! Ou melhor, FRUTAS FRESCAS (com letras maiúsculas). Não me dei conta do momento em que elas foram içadas a bordo, antes mesmo de o navio estar firmemente atado, mas eu estava presente no momento em que elas foram impiedosamente devoradas ali mesmo sobre os barris de combustíveis.
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Frutas frescas com petróleo! Hummm!!! |
Tendo deixado o navio, fiquei mais quatro dias na Nova Zelândia aguardando a data do meu voo de retorno ao Brasil. A Nova Zelândia é um grande acidente geográfico! Um trecho de terra com fauna e flora únicas e exuberantes. Conversando com alguns dos tripulantes neozelandeses, eu havia programado algumas coisas para ver e fazer durante esses quatro dias. Mas antes de qualquer outra coisa, havia uma que precisava ser feita. Encontrar frutas e vegetais frescos. Sim, mais, pois aqueles da recepção não foram suficientes para apaziguar os tantos dias de privação dessas maravilhas alimentares. mas para conseguir as frutas, eu teria que atravessar uma selva de pessoas, de sons e de luzes. A poucos metros do porto onde atracamos há um estádio e naquele momento acabava a partida final de um campeonato internacional de rúgbi. Havia muita gente nas ruas. Naquele momento, qualquer número acima de 44 pessoas seria equivalente a muitas pessoas, e havia centenas de grupos de 44 pessoas por todos os lados, mesmo no porto, onde as pessoas se reuniam nos bares ali instalados para celebrar fantasiadas como quem vai a uma festa à fantasia (por algum motivo eles se fantasiam para ir aos jogos). Extraterrestres, bruxas, fadas, duendes e toda sorte de seres humanos e não-humanos, terráqueos ou não, foram a primeira visão ao desembarcar. Com duas mochilas nas costas, o corpo cansado, a experiência fresca e a mente em adaptação e sem localização, os pensamentos mais estranhos passavam pela minha mente ao me encontrar inserido naquela cena surreal onde centenas de pessoas celebravam freneticamente enquanto eu dava os primeiros passos em terra firme e procurava me adaptar às vozes, às luzes, aos sons, à falta do balanço do navio, a tantas coisas que eu nem me dava conta.
Apenas a minha determinação por encontrar frutas e vegetais frescos foi capaz de me ajudar a sobreviver ao episódio (risos). Logo cheguei a um supermercado. Bem ali na entrada estava a visão do paraíso, clara como nenhum poeta jamais foi capaz de descrever. Cores vivas, texturas macias e sabores frescos. Também me chamaram a atenção algumas flores e outras plantas que estavam por ali. Cheirei as flores, acariciei as plantas e enchi um cesto de vegetais e frutas frescas que foram devorados durante os próximos quatro dias, durante os quais não comi qualquer outra coisa além desses alimentos crus. Feliz, caminhei entre as fadas e extraterrestres, comi, tomei um longo banho que durou mais que 3 minutos e dormi (inclusive, dormi parte dentro do banho), dormi muito.
Durante esse quatro dias em que pude explorar brevemente a Ilha Norte desse país, tive a certeza de que desejo voltar a essa região do planeta em um futuro próximo, talvez com outra forma de atenção. Dessa vez, as coisas mais simples como uma flor ou a própria terra (o chão mesmo) eram motivo de alegria e prazer. Visitei jardins botânicos (coisa que eu jamais havia feito em uma viagem) para poder estar em contato com as plantas, caminhei descalço por florestas para sentir o chão firme e úmido sob os meus pés. Mas as alegrias não se resumiam a terra e plantas. Também usei o telefone e respondi e-mails (centenas deles), que foram outras coisas das quais eu estive privado enquanto estava a bordo (eu apenas tinha permissão para enviar textos previamente monitorados, mas para receber notícias), agora notando o quao ricas são essas ações que costumo tomar como sendo triviais.
No dia do meu embarque para o Brasil veio a melhor notícia que eu poderia ter recebido antes de deixar a Nova Zelândia: o Gojira havia localizado o navio-fábrica! Era o fim da temporada de caça para a frota baleeira japonesa. Hoje, dia 17 de fevereiro de 2011, oito dias depois da localização desse que é o coração da frota baleeira, o governo japonês ordenou que os navios retornassem ao porto no Japão e foram bem claros ao declarar o motivo de antecipado o retorno para mais de um mês antes do previsto: “Não é possível caçar na presença da Sea Shepherd!”. A frota baleeira voltou para casa com menos de 15% da sua cota auto-estabelecida de 1.000 baleias. Isso significa que mais de 850 baleias continuam nadando livres nos oceanos graças à intervenção realizada pela Sea Shepherd com o apoio de seus voluntários e colaboradores.
Mesmo diante de todas as adversidades e riscos enfrentados, esse resultado é tudo o que importa. A frota baleeira não caçou no início da temporada quando a localizamos no dia 31 de dezembro, caçou em ritmo reduzido em momentos posteriores e, 40 dias depois, o governo japonês ordena o seu retorno ainda na metade da campanha. Esse resultado (que é um resultado pequeno diante da obrigação ética e dívida histórica que temos com esses animais) atesta para o valor do empenho que cada um pode dedicar em ações que, por mais que em um determinado momento possam ser extremamente desgastantes ou parecer improdutivas, acabam por render frutos que são muito gratificantes para os animais que deles usufruirão.
Quero concluir essa série de relatos dizendo que não foi fácil desembarcar do Steve Irwin no meio da campanha. Ou mesmo que tivesse sido no final dela. Na verdade, acredito que não tenha deixado completamente, tanto o navio quanto as pessoas com quem tive a oportunidade de conviver durante esses 46 dias. Deixei o Steve Irwin com a certeza de que sentiria falta de tudo o que ali ficava: a rotina, os espaços, as pessoas, os bons e os maus momentos da convivência que nem sempre foi fácil, ainda mais quando ela dura por tanto tempo e fica confinada a um espaço que é menor que o próprio tempo, mas ainda assim consegue ser rica o tempo todo... e que deixa saudades. Mas eu não sentirei falta da experiência, pois essa eu trago comigo. Trago também o aprendizado, as aventuras, a realização do trabalho e as conquistas, essas que não podem ser comemoradas por aqueles que se beneficiarão delas, mas que serão usufruídas mesmo sem saberem que elas aconteceram. Para mim, essas são as melhores conquistas que podem haver, aquelas cujos resultados não podem ser medidos (e justamente por isso dispensam celebração) e que apesar de não trazerem qualquer benefício a quem as viabilizou, garantem benefícios duradouros a quem delas usufruirá.
Tendo participado de mais essa expressão de ativismo pelos direitos animais, a via da ação direta não-violenta, convoco a todos a deixarem a sua zona de conforto e colocarem-se a fazer aquilo que acreditam ser justo e necessário para a preservação da vida e a defesa do planeta.